Estava ali, entre dois paneiros cheios de açaí. Era um anel bem dourado e brilhante. Peguei o anel e procurei por um possível dono. Só avistei alguém com umas roupas esquisitas andando rápido para longe dali. Pensei ter ficado rico. Aquele anel renderia um bom dinheiro, mas por que não experimentar no meu dedo?
Colocando o anel na mão direita, notei que o anel emitia uma luz azulada em seu interior por entre pequenas rachaduras similares a ramificações de folhas. Escolhi ignorar a cor estranha e usar o anel mesmo assim. Coube perfeitamente no meu dedo. Segurei o anel com a mão esquerda e o girei para melhor admirar. Um clarão de luz repentino me assustou.
Eu já não estava perto da venda de açaí. Não entendi como fui parar ali. Caminhei de volta à feira para comprar o que minha esposa havia pedido para a ceia de Natal.
Na hora de pagar, quase brigo com o vendedor pelos preços altos. Um senhor vestido todo de branco, inclusive usando um chapéu branco enfeitado com uma fita vermelha em volta, foi quem interveio e me acalmou. Agradeci, porém, desconfiei quando ele elogiou meu anel enquanto eu ia embora.
Ao chegar em casa, minha esposa não me deixou entrar.
— Por onde andaste, Bruno? Dez anos!? Me deixaste sozinha! — brigou comigo, dando tapas no meu peito.
Sem entender, lhe mostrei o anel e disse que ficaríamos ricos. Girei o anel no meu dedo duas vezes para ela ver melhor. Outro clarão de luz quase me cegou novamente.
Eu estava de volta à feira. Próximo à Casa do Haver o Peso. Havia um clima estranho no ar. Pessoas guardando suas mercadorias e saindo da feira com pressa. Gritavam que os Cabanos estavam chegando para pegar a cabeça dos fiscais. Guardas se aproximavam para circundar o posto fiscal enquanto uma multidão enfurecida vinha das ruas da cidade.
Corri para longe e encontrei aquele mesmo senhor vestido de branco mendigando ali perto. Eu já sabia o que fazer. Fechei os olhos e girei o anel no meu dedo mais uma vez.
Abri os olhos e me vi numa rua deserta. Respirei fundo, mas a paz não durou muito. Um grupo de homens mal-encarados me cercou e tentaram pegar meu anel, mas ele não saía do meu dedo. Fui jogado ao chão e em meio a muitos chutes nas costelas, não tive muita escolha a não ser girar o anel novamente.
Mais uma vez, eu vi a cidade mudar em um mero instante. A Casa de Haver o Peso não existia mais. Até as roupas das pessoas estavam diferentes. Caminhei por alguns dias para me ambientar, mas não me sentia bem ali. De olhos fechados, girei o anel mais duas vezes esperando encontrar algo melhor. Eu estava de volta à feira.
— Ô do anel! Até que enfim te encontrei.
Gritou para mim um homem numa das barracas da feira. Percebi que era o mesmo caboclo vestido de branco que tinha elogiado meu anel. Reconheci seu nariz largo e sorriso pequeno mostrando poucos dentes.
— Desde 1839 que eu te procuro. Por onde andavas?
— 1839?! O que queres dizer com isso? O que está acontecendo? — perguntei assustado.
— Esse anel aí na tua mão... Onde encontrou? Ele não é teu. Preciso que entregue a mim.
Eu não deixaria aquele estranho pegar meu anel. Prontamente, comecei a girar no dedo e nem esperei ele terminar de falar.
— Cuidado! Daqui pra frente tudo vai mudar muito…
Mais duas voltas no dedo e a paisagem da cidade, novamente, havia se alterado. Não só a feira estava maior como as casas estavam diferentes e havia uma grande construção acontecendo ali perto.
Um grande edifício de ferro estava sendo montado. Com torres de ferro imponentes. O que estavam fazendo com a minha feira?! Comecei a andar até a igreja para pedir ajuda. Nunca fui muito religioso, mas eu precisava sair daquele pesadelo de qualquer forma. No caminho, lembrei do caboclo falando sobre 1839 e sobre o anel. Parei há poucos metros da igreja e decidi girar o anel de novo várias vezes para testar a hipótese que estava em minha mente.7
Apareci de volta na feira. Próximo aos barcos e aos urubus devorando carcaças de peixes. O prédio de ferro estava todo montado e atraía muitas pessoas para lá. A feira estava abarrotada de pessoas. Ainda havia muitas outras barracas ao redor da estrutura metálica. Talvez aquele caboclo ainda estivesse por lá.
Ali estava ele, em uma barraca de artesanato e outros objetos esquisitos. Mesma roupa branca, mesmo sorriso, sem envelhecer nem um dia. Testei minha hipótese com uma pergunta bem direta a ele:
— E agora? Em que ano estamos?
— Até que enfim, apareceste! Veio me entregar o anel? — perguntou sorrindo, mas rapidamente ficou sério ao me ver esperando por respostas — Estamos em 1939. A cidade cresceu bastante com a produção de borracha. Há rumores de uma nova guerra acontecendo na Europa. Estás entendendo?
— Acredito que sim. Toda vez que giro o anel eu viajo para o futuro.
— Isso mesmo! — me confirmou sorrindo de novo — Percebes como isso é perigoso?
— Preciso testar isso mais uma vez — Imediatamente, girei o anel fechando os olhos.
Havia cada vez mais pessoas passeando na feira. Sempre com o clima festivo de fim de ano. Não perdi tempo e fui direto ao caboclo de branco perguntar:
— O que aconteceu nos últimos 10 anos?
— Bem-vindo! A guerra na Europa acabou, porém ceifou milhões de vidas. Dizem que foi a Guerra para acabar com todas as Guerras. Até onde tu irias pra ver se isso é verdade? Vás usar o anel até que uma guerra chegue aqui?
— Como isso é possível? Que bruxaria é essa nesse anel?
— Não é bruxaria. O anel é uma chave. Quando tu giras o anel no dedo, ele liga uma máquina antiga e poderosa.
— Eu não vejo máquina alguma. Muito menos uma fechadura para essa chave.
— Ah! Mas ela está aqui. Oculta nas lendas dos rios e florestas, nas histórias que avisam para as pessoas não chegarem perto de certos lugares. Lembra da Cobra Grande? Quanto à fechadura, ela sente a proximidade do anel e seu comando quando tu o giras. Acredito que as pessoas dessa época chamam esse fenômeno de entrelaçamento quântico.
— Como sabes de tudo isso?
— Sou apenas o mecânico. Eu estou tentando consertar essa máquina. Por isso, preciso do anel de volta.
— Ele não sai mais do meu dedo. Mesmo que saísse, já me acostumei com a ideia de viajar para o futuro. Estou começando a gostar.
— Eu temia que dissesses isso. Então toma! Pelo menos veste uma roupa mais decente e joga fora essa vestimenta do século passado. Estarei aqui nessa mesma barraca quando desistir dessa aventura.
Peguei a sacola de roupas que me ofereceu e fui até algum beco deserto para me vestir. Calça preta, paletó preto e camisa branca. Eu parecia algum aristocrata. Pelo menos, seria melhor recebido na próxima década.
Não passei muito tempo no futuro seguinte. Precisei roubar algum dinheiro, nos primeiros dias, para poder sobreviver. Gastei algumas semanas me divertindo entre as novidades da cidade e muitas mulheres bonitas. Aprendi sobre as novas tecnologias que surgiam e sobre os velozes veículos que ocupavam as ruas e os céus. Mas aquilo não era o bastante. Eu queria ver mais do futuro. Girei o anel mais três vezes.
O mercado de ferro, agora, estava todo pintado de azul. Não via mais carroças nas ruas, apenas os barulhentos veículos metálicos. Parei para tomar um açaí enquanto ouvia as notícias do rádio: o país tinha um novo presidente, um caçador de marajás; falavam também do fim de uma “guerra fria”, mas não entendi do que se tratava. Quando o vendedor me cobrou o açaí, percebi que o dinheiro também havia mudado. Desesperado, corri e girei o anel.
A quantidade de carros motorizados andando pelas ruas da cidade era maior. Vi alguns jovens conversando alegremente e julguei adequado perguntar-lhes as novidades.
— Com licença, tudo bem? Tem algo especial, hoje, aqui na feira?
— É um encontro da galera da internet. Temos que sair do virtual e ir pro real. Não dá pra ficar só no chat não é mesmo?
— Ah! Obrigado! — Respondi sem entender nenhuma palavra do que disseram.
Julguei melhor usar o anel mais uma vez. Já estava começando a entender porque o caboclo disse que ele era perigoso. Eu estava perdido, mas não via outra alternativa a não ser continuar em frente.
Eis que a feira estava reformada de novo! Lonas brancas serviam de teto para as barracas. Caminhei por entre os corredores evitando chegar perto do caboclo de roupa branca. Havia televisores em várias barracas exibindo as notícias em meio à música alta que tocava nas barracas ao lado: os Estados Unidos elegeram um presidente negro; falavam também de aviões se chocando contra edifícios; e de guerras e mais guerras. Minha cabeça doía com tanta informação. Precisava sair dali. Voltar para casa. Ou girar o anel. Só mais uma vez.
Imediatamente, me arrependi. Os televisores agora estavam nas mãos de cada pessoa. A música continuava esquisita, acelerada e com fortes batuques. O barulho dos carros e a multidão agitada me assustavam. Procurei a única pessoa que podia me ajudar, tentando não parecer tão desnorteado:
— Quais as novidades dessa década?
— Olá, de novo! Já fazem 70 anos! Suponho que muitas das novidades são bem visíveis ao nosso redor. Também andam falando de um novo vírus mortal descoberto na China…
— Eu não quero mais esse anel. — O interrompi — como faço para me livrar dele?
— Até que enfim! O anel não sai fácil da mão de quem o usa. Tens que me entregar voluntariamente. Esse é um dos problemas da máquina que preciso consertar. Para isso, precisas redefinir as configurações da máquina e do anel, voltando para seu estado inicial.
— Como eu faço isso?!
— Gira o anel ao contrário. No sentido oposto ao que tu costumas fazer. Como já viajaste duzentos anos, precisará girar 20 vezes. Isso deve te levar até alguns momentos antes daquele quando tu encontraste o anel.
Fechei os olhos e comecei a girar o anel. Seria assim tão simples? Girei três vezes. Será que o caboclo misterioso estava falando a verdade? Nove vezes. Um arrepio percorreu meu corpo. Eu só podia confiar nele, pois era a única pessoa que, assim como eu, não envelhecia ao longo das décadas. Dezesseis vezes. Meu corpo tremia em espasmos. Considerei improvável que o tal mecânico estivesse mentindo. Vinte vezes.
Abri os olhos e chorei. Eu estava de volta em casa. De volta ao mercado do jeito que eu conhecia desde criança. Respirei o cheiro gostoso de açaí chegando das embarcações. Eu não queria mais saber daquele anel. Arranquei da minha mão e joguei longe, ansiando por sair da feira o mais rápido possível. Foi a última vez que vi aquela luz azulada misturada ao atraente brilho dourado. O anel, então, caiu ali, entre dois paneiros cheios de açaí.