O verde florido das paredes brilhava alegremente à distância na estação Hermes, enquanto Perdyn reclamava para Sofan sobre a viagem vindoura. Não estavam sozinhos, mas naquela estação de oito mil metros quadrados ao ar livre, podiam conversar à vontade sem que alguém os entreouvisse.

“Queria desistir dessas aulas de pintura, sabia…” vociferou Perdyn, de braços cruzados olhando fixamente para o outro lado dos trilhos.

“Por isso que você acordou tarde então. Faz parte do nosso currículo obrigatório, Perd. Logo iremos concluir isso.” Respondeu Sofan em um tom de apoio positivo. “Por favor, se esforce para concluir.”

“Tudo bem, tentarei. Quem iremos imitar hoje?” perguntou Perdyn.

“No calendário consta Rembrandt.” confirmou Sofan.

“Ah aquele que gosta de brincar com luzes e sombras.” lembrou Perdyn. “Já sei que falharei miseravelmente na aula de hoje.”

“Vai dar certo, amor” Sofan respondeu com um beijo em Perdyn, o que despertou nele um sorriso. “Tente se colocar no lugar do artista e na mesma época. Lembre-se que eram tempos em que o conhecimento era para poucos e a luz existia apenas nas mãos de sacerdotes religiosos. Tente representar isso nas suas pinturas.”

“É muito diferente do que temos hoje, Sofie.” argumentou Perdyn. “Eu quero é falar sobre o futuro e não o passado! Quero pintar meus sonhos para uma cidade cada vez melhor e inspirar os engenheiros a construir meus onirismos.”

Enquanto conversavam, o trem se aproximou e freou silenciosamente na estação. O trem flutuava sobre trilhos magnéticos alimentados pela energia solar infinita à disposição de toda a cidade. A área oficial da cidade era gigantesca com vastos parques entre os prédios. O principal meio de transporte eram os trens de superfície que se deslocavam por cima de tais parques. O silêncio das máquinas era imprescindível para manter a qualidade da vida animal lá em baixo e a tranquilidade necessária para as atividades humanas nas regiões urbanizadas para tal. No caminho para a Escola de Artes, Perdyn olhou para baixo e se encantou com um grupo de crianças brincando em um riacho. Ele se encantou com os largos sorrisos dos pequenos.

A Escola de Artes fora construída em forma de um gigantesco domo de vidro transparente de onde se podia ver várias árvores floridas no salão principal. Ao redor do domo, alamandas coroavam a construção com suas flores amarelas. No centro do domo, havia uma grande estrutura metálica mimetizando ramificações de árvores conduzindo as pessoas através dos galhos para múltiplas salas de aula, bibliotecas e laboratórios de arte.

A aula de pintura fora tão desgastante para Perdyn quanto ele antevira. Não conseguiu encontrar um bom equilíbrio de luzes na sua pintura, mesmo tendo escolhido pintar a familiar paisagem de seu apartamento. Sentindo-se derrotado, só teve forças de pedir licença a Sofan para poder caminhar em paz pela vizinhança. Fora do domo, respirou fundo e saiu a caminhar pela larga avenida residencial de florestas verticais, entre a Escola de Artes e o Museu do Capital, onde se guardava a memória das antigas tradições econômicas da humanidade. Sentiu-se bem ao olhar para cima admirando os prédios verdes contrastando com o belo céu azul. No parapeito de um parque, dez níveis acima da avenida, um homem estava estranhamente parado. Perdyn franziu o olhar, curioso para enxergar melhor a cena. O homem, então, caiu avermelhando a avenida e suas brancas vestes com seu sangue e assustando todos os transeuntes.

Enquanto as pessoas encaravam o corpo, paralisadas, ou se aproximavam curiosas do falecido, Perdyn correu para o edifício de onde ele caíra para descobrir o que teria acontecido. Se perguntava da possibilidade dele ter sido empurrado, ou se apenas se desequilibrara. Subiu até o parque pelo elevador e ao chegar no parapeito, não encontrou sinal de ninguém mais por lá. Olhando em volta, pôde notar um cartão de memória no chão próximo de onde o homem parecia ter caído. Se abaixou para pegar o cartão e notou que nele havia um adesivo com um desenho de duas serpentes vermelhas entrelaçadas verticalmente tentando devorar uma à outra. Neste instante, o elevador parou de novo no parque com outras pessoas vindo investigar. Perdyn guardou, instintivamente o cartão em seu bolso.

“Por favor, retire-se”, disse um dos recém-chegados. “Deixe que assumimos a investigação a partir daqui.”

Perdyn saiu sem questionar. Ao passar pelas pessoas, notou nas roupas brancas o rubro emblema da Fundação Apolo, mas não conseguiu se lembrar qual instituição era aquela. Decidiu voltar para casa e reencontrar com Sofan.

“Fiquei preocupada com sua mensagem, Perd”, disse Sofan ao chegar em casa. “Deve ter sido assustador testemunhar algo assim.”

Perdyn estava concentrado em frente ao seu computador tentando ler o conteúdo do cartão de memória e prestou pouca atenção a ela.

“O que é a Fundação Apolo? Porque eu não ouvi falar antes deles? O que tem dentro desse cartão? Parece que só consigo abrir em um computador dessa Apolo…” Perdyn falava sozinho. Sofan o abraçou preocupada mas deu pouca atenção a ela.

Nas semanas seguintes, tais cenas se repetiam. Cada vez mais Perdyn falava sobre o suicídio que presenciara. O suicida se chamava Mirtyl, segundo o noticiário, mas nada se falou sobre as motivações de sua mórbida escolha. Perdyn se pôs a pesquisar tudo o quanto possível a respeito daquele homem e, após diferentes contatos, recebeu a informação sobre o trabalho de Mirtyl, ele fora engenheiro na tal Apolo.

“Querido, deixe isso para lá.” implorava Sofan. “Eu sinto falta de nossas caminhadas no parque, nossas conversas.”

Contudo, Perdyn agora concentrava-se em descobrir mais sobre a misteriosa Fundação. Logo, aprendeu que no mesmo prédio do suicida havia um escritório da Apolo ao qual foi visitar para entender quem eram eles. A Fundação Apolo tinha como objetivos pesquisas espaciais e o desenvolvimento de tecnologias vanguardistas para além da Terra. Perdyn pensou se tratar dos sonhos de terraformar o planeta Marte, mas mesmo assim ficou curioso e decidiu invadir o escritório à noite para descobrir o conteúdo do cartão.

Quando soube dos planos de Perdyn, Sofan decidiu não voltar mais para aquele apartamento e ficar sozinha até que ele recuperasse o juízo. Pois ela o via envolto num sombrio vapor de sangue evaporando de sua pele e temia pela segurança de ambos caso ele continuasse sua busca. Sentindo-se sozinho, Perdyn concluiu não ter nada mais a perder. Alguns dias depois, invadiu o escritório da Apolo disfarçado em similar roupa branca com detalhes vermelhos que ele mesmo costurara torto.

Foi difícil encontrar um computador que estivesse desprotegido, sem senha, mas Perdyn não desistiu até localizar seu objetivo e inserir o cartão hermético. Leu, então, com muita atenção a carta de suicídio de Mirtyl:

“Não tenho mais condições de contribuir com esse projeto. Cresci acreditando em uma sociedade protetora da Terra, com uma humanidade acolhedora de suas diferenças e zeladora do bem-estar de todas as espécies do planeta. No entanto, continuamos sendo predadores e destruidores como sempre fomos. É inaceitável! É aterrorizante! Na nossa busca incessante por energia para impulsionar nossas invenções, destruímos totalmente o planeta Mercúrio. Não é natural que uma espécie qualquer se dê ao direito de eliminar um planeta inteiro de sua existência. Fizemos isso, pois precisávamos dos minérios. Mercúrio foi minerado completamente por máquinas autônomas enviadas para lá. Tudo o que foi extraído foi transformado no Enxame de Dyson, satélites artificiais que orbitam o Sol para extrair energia da estrela e enviá-la de forma concentrada para a Terra. Resolvemos nosso problema energético, eliminamos os danos que por décadas machucavam o planeta. Me pergunto se o custo valeu a pena. Não consigo mais carregar o fardo de colaborar com essa destruição e outras que estão por vir.”

Por vários dias, Perdyn ficou perdido em pensamentos em seu apartamento até voltar à sua rotina. De volta à Escola de Artes, encarou longamente as árvores do pátio e, elevando os olhos das sombras no chão, viu os troncos marrons refletidos nas ramificações metálicas que também refletiam majestosamente a luz exterior num misto de brilhos e luzes pelo efeito prismático. Percebeu que o jogo de luzes de Rembrandt não conduziam os olhos para um passado, eram estratégia para imersão no presente. Perdyn decidiu usar a mesma técnica de modo a conduzir as pessoas para seus próprios sonhos através de suas pinturas.

“Não devemos temer nosso destino natural de expandir nossa existência”, pensou Perdyn. “A Terra tem capacidades limitadas e a solução está de fato além de nossa atmosfera. Minerar planetas inteiros não causa prejuízo a humanidade. Pelo contrário, auxilia-nos a evoluir como sociedade e a sonhar cada vez mais ambiciosamente com nosso futuro. É na arte que começa esse sonho! Com arte e ciência, realizamos nossas ambições.”

Na aula de pintura daquele dia, Perdyn foi o mais elogiado. De suas mãos fluíram as pinceladas do retrato da colonização interestelar. Via-se o Sol ocupando não o espaço mais brilhante do quadro, mas como uma luz distante e essencial, os demais planetas eram apenas sombras ofuscados pelo brilho da espaço-nave Caduceu decolando da Terra. A sustentabilidade do planeta apoiada na criatividade de Hermes.