— Doces ou Travessuras? — gritaram juntas as três crianças.
— Claro que tem doces pra vocês — Ofélia respondeu sorrindo
Era a terceira casa que visitavam naquela noite e já estavam contentes de terem recebidos muitas balinhas de Dona Ofélia, a vovozinha mais carinhosa de toda a rua. Saíram sorrindo após terem ganhado também um beijinho na testa e muitos doces.
— Ei, ainda não fomos naquela casa ali — apontou Beatriz.
— Parece escuro demais, Bia. Acho melhor não irmos. — contrapôs Daniela.
— É porque a luz do poste queimou. Não tem nada de mais. — disse Roberto, puxando Daniela pela mão.
Daniela notou que a casa para onde as crianças se dirigiam parecia estar sendo evitadas pelas outras pessoas da rua. Ninguém olhava na direção da casa. Mesmo assim, Beatriz seguia adiante com passos apressados enquanto ela e Roberto se esforçavam para seguir.
De longe, a casa parecia não possuir qualquer ornamento na sua fachada. Tinha apenas uma parede simples, sem pinturas extravagantes e quatro janelas, duas de cada lado da porta. Ao se aproximarem parecia que as molduras das janelas se transformavam sempre que olhavam para elas. Incomodados, focaram seus olhares para a entrada da casa. A porta da frente estava pintada com uma runa feita com tinta vermelha recente pintada às pressas. Ainda se podia ver a tinta escorrendo em vários pontos. A runa parecia com a letra ípsilon invertida e com uma listra que a cortava verticalmente passando pela listra maior e a listra menor à esquerda. Beatriz sorria.
— Esse aí entrou bem no clima de Halloween!
— Vamos embora, Bia. — implorou, Daniela.
— Já estamos aqui na porta. Aposto que a pessoa vai pedir travessuras.
Beatriz não encontrou campainha e bateu quatro vezes na porta de madeira.
A porta da casa se abriu lentamente com as dobradiças rangendo. Roberto se arrepiou com o barulho e deu um passo atrás. Daniela não sabia se o acompanhava ou se seguia a liderança de Beatriz, então ficou parada prendendo a respiração temendo o que pudesse estar atrás da porta. Beatriz balançava como um pêndulo, animada pela expectativa de travessura que fariam naquela noite. Quando a porta terminou de abrir não havia ninguém para recebê-los.
O corredor interno estava todo escuro. As crianças não conseguiam enxergar muito longe para dentro da casa. Foi Beatriz que notou algo iluminado pela fraca luz da lua aos seus pés.
— Doces de novo?! — Beatriz reclamou.
— Onde tem doce, Bia? — Daniela perguntou se inclinando para tentar ver o que estava oculto por sobre o ombro da amiga.
— Aqui no chão, Dani. Olha! Deixaram só essa cesta de doces.
— Vem, Beto! — resmungou Daniela ao puxar o amigo pela mão para também se aproximar da porta da casa.
Aos pés deles, estava uma cesta cheia de docinhos numa embalagem plástica preta com a mesma insígnia pintada na porta da casa. Procuraram mais uma vez por alguém por perto, dentro ou fora da casa, mas não havia ninguém ali.
— Vamos pegar tudo! Não tem ninguém olhando — sugeriu Beatriz.
— Não! Isso é uma armadilha. Alguém vai correr atrás da gente — sussurrou Roberto.
— Tá bom, medroso! — Beatriz aquiesceu. — Cada um pega três balinhas então e pronto!
As crianças pegaram três balinhas e voltaram para a rua apressadamente. Ao olhar para trás, Beatriz notou que a porta da casa estava fechada novamente, mas não se lembrou de ter ouvido o barulho das dobradiças ou da fechadura. Em meio às sombras, não era possível distinguir a runa na porta e não pareciam existir janelas.
Na manhã seguinte, Beatriz acordou meio tonta e ouviu sua mãe falando ao telefone com a mãe de Daniela:
— Você que deu essas balinhas pretas e vermelhas pra minha filha? — ela questionava com um tom de preocupação na voz — Se não foi você, então quem foi? Achei muito estranha. Não tem nenhuma marca conhecida impressa, então pensei que fosse de fabricação caseira.
Nesse instante, ela percebeu a filha entrando na cozinha e desligou o telefone.
— Bia, onde você conseguiu essas balinhas? São muito estranhas.
— Não sei, mãe! Deixa eu comer meu pão.
— Onde vocês foram ontem à noite? Quem estava com vocês? Que marca é essa na embalagem?
Beatriz pegou o doce e focou no desenho vermelho brilhante sobre o plástico preto. Deixou do lado do prato de pão e respondeu sua mãe com voz de sono.
— Não lembro onde a gente pegou essa balinha, mãe. Não lembro mesmo. Eu estava com o Beto e a Dani. Pegamos uns doces com Dona Ofélia. Depois não lembro de mais nada.
— Ai meu Deus! A Daniela falou a mesma coisa pra mãe dela. Come teu pão e toma um suco! Eu vou ligar pra mãe do Roberto.
Enquanto comia o pão, Beatriz não tirava os olhos da balinha. O brilho da tinta vermelha parecia mais forte e atraente. A cada mordida, ela mastigava mais devagar enquanto olhava para o doce. Deixou o pão de lado e decidiu provar o bombom misterioso.
Era um bombom de chocolate. Uma bola quase perfeita de aproximadamente três centímetros de diâmetro. Não havia desenhos na superfície e o chocolate não derretia em sua mão. Aproximando o doce de sua boca, o odor açucarado invadiu suas narinas misturado ao característico aroma do cacau. Ao morder, o crepitar da superfície marrom foi tão agradável aos ouvidos que a fez fechar os olhos para se concentrar apenas na sensação gostosa que a guloseima lhe proporcionava. Contudo, a doçura do chocolate rápido se perdeu misturada a alguma outra substância usada no recheio. Tinha um gosto metálico e bastante ácido. Beatriz lembrava daquele gosto de algum lugar. Sua memória revisitou o dia quando caíra de bicicleta e batera sua boca na calçada de casa.
Beatriz afastou o doce para olhar qual era o recheio. Um líquido avermelhado e espesso escorria por entre seus dedos. Enquanto sua visão embaçava e uma súbita tontura a acometia, Beatriz lembrou o que era tal sabor. A poucos instantes de sua cabeça atingir o chão da cozinha, tentou sem sucesso sussurrar a palavra: sangue.