"Cuidado, Valentina!", gritou Rian ao vê-la pulando no igarapé. "Não sabemos se tem cobra ou piranha nesse rio".
"Deixa de onda, Rian. Entra logo na água." Disse outro menino a quem as crianças só chamavam Júnior. Ninguém sabia qual era o verdadeiro primeiro nome dele.
As crianças riam alto enquanto corriam alegres para o banho. Um grupo de oito pré-adolescentes que saíra da escola para se banharem no igarapé ali perto. Escolheram um canto onde o igarapé era pouco frequentado por adultos, logo não tinha som alto ou bebida alcoólica por perto, apenas os jovens divertindo-se. As águas ali não eram fundas, portanto não havia necessidade de saber nadar. As crianças gostavam de sentar-se na água para relaxar e brincar de adivinhas. Era final de tarde. O céu já estava avermelhando devagar. Logo todos teriam que voltar para suas casas.
Quando já estava saindo da água, Rian avistou algo curioso e perguntou aos demais.
"Gente, que planta é essa?", apontou Rian com sua mão direita. "Nunca vi nada tão bonito."
"Aquilo é timbó, Rian", explicou Denis. "Usamos para pescar. Tem que amassar as folhas e jogar no rio. Os peixes ficam tontos e começam a boiar. Daí é só pegar os peixes com a mão mesmo. Mas tem que saber a quantidade certa para não matar todos os peixes no rio."
Valentina apertou os olhos para ver melhor e, em seguida, abriu a boca em espanto.
"Fica longe disso, Denis!", gritou Valentina. "Isso aí não é timbó. É a visageira!"
"É o que, Val?", perguntou Denis. Rian olhava de um para o outro em dúvida procurando compreender o melhor possível.
"Visageira. Minha avó já falou dessas plantas." explicou Valentina em tom de medo. "Ela me disse que essa planta transforma as pessoas em visagem."
"Isso não existe!" exclamou Denis. "E se existisse o que faz a visageira ser diferente?"
"As listras brancas nas folhas.", Valentina esclareceu apontando para a planta. "Um timbó comum não tem essas listras brancas. Isso é visageira, tenho certeza."
"Ah! Fala sério, gente!" debochou Rian. "Visagens?! Fantasmas?! Vocês não acreditam nisso de verdade né? É só uma arvorezinha com flores bonitas. Vou até lá pegar umas dessas flores e levar para casa."
"Não! Não faz isso" Valentina gritou e as outras crianças todas se assustaram e pararam para encarar a cena.
Rian sentiu-se ofendido, com seu orgulho ferido ao ser impedido de prosseguir. Viu que todos seus colegas o encaravam na expectativa de saber o que ele faria. Franziu o cenho, fechou os punhos e respondeu: "Você não manda em mim!", gritou com um certo tremor na voz. "Farei o que eu bem entender."
Seus colegas se assustaram com a cena e alguns até deram alguns passos para trás quando Rian saiu da água em direção à planta que avistara. Seguiu pisando forte espalhando água em várias direções e quebrando galhos ao chegar na terra seca. Enquanto ele se aproximava do arbusto, Denis chegava mais perto de Valentina, buscando apoio de alguém que demonstrava maior conhecimento. Valentina estava com as pupilas dilatadas, sentindo o suor escorrer pelo pescoço e pelos seus braços. Júnior também viera para perto dos dois para entender melhor o que estava acontecendo.
"Porque toda essa gritaria?", inquiriu Júnior sem entender o contexto. "Por que vocês parecem assustados?"
"É visageira", Valentina respondeu com voz fraca.
"Não acredito", disse Júnior arregalando os olhos.
"É verdade. Júnior", reforçou Denis, "Eu também pensei que fosse só um timbó, mas olha lá. Aqueles listras brancas nas folhas. Elas têm uma aparência estranha se você reparar bem."
"Sim. Fantasmagórica", concordou Júnior pensativo.
Rian ficou em pé ao lado da planta e olhou para seus amigos. "Viram só não tem nada de mais. Não existe essa coisa de visageira", ele falou alto em desafio.
"Não toca nela, Rian", implorou Júnior. "Meu avô me contou histórias dessa planta também. Pelo que lembro, se alguém tocar nas folhas ou nas flores vai se transformar. Ou seria comer o fruto? Sei lá! Só se afasta daí."
"Não pode tocar é?", Rian respondeu com um sorriso sarcástico. Estendeu sua mão esquerda para a planta. Naquele instante, um calafrio percorreu seu braço e tremeu da cabeça aos pés. Não conseguia tirar os olhos das folhas verdes e brancas. Lhe parecia que as listras brancas dançavam por sobre a folha em movimentos ondulares. Sabia que aquilo não era possível, mas mesmo assim a curiosidade aumentava. Se perguntava se havia algum fundo de verdade na superstição de seus amigos. Mesmo sem sentir direito sua respiração ou as batidas de seu próprio coração, encontrou forças para arrancar uma das folhas do arbusto e erguê-la em exibição para as crianças como se fosse um troféu. Ele, então, decidiu brincar com seus colegas assustando-os. Abaixou os olhos, trouxe a mão próximo ao rosto e fechou o punho amassando a folha. Ninguém percebeu, mas ao ser amassada, a folha se desintegrou e o vapor que produziu era branco e ligeiramente esverdeado. Rian inspirou aquela fumaça e julgou agradável e doce. Ele queria mais daquilo. Entretanto, primeiro levantou a cabeça rapidamente para seus amigos e gritou erguendo os braços acima de seu corpo imitando um monstro que fosse pegá-los. Algumas crianças realmente se assustaram e se puseram a correr gritando para longe do igarapé; para longe de Rian. Os três mais próximos também saíram correndo acompanhando os demais, enquanto Rian ria em desprezo das crenças de seus amigos e colegas.
As crianças se apressaram para chegar em suas casas para suas respectivas rotinas de sono. Rian foi o único que não chegou em casa naquele dia.
"Quem sabe de onde vem o nome de nossa cidade?", perguntou a professora Rita para a turma de sexto ano do ensino fundamental. A maioria das crianças que estavam no igarapé no dia anterior eram desta classe. Todas olhavam curiosas para a professora esperando que ela respondesse.
"Ninguém sabe, professora", respondeu Valentina diante do silêncio de seus colegas.
"Pois bem! Isto está na página trinta da apostila da escola", explicou a professora. "Recomendo que leiam quando chegarem em casa. Vamos lá! O nome de nossa cidade, Anhangatuba, significa Terra de Espíritos, ou Terra de Demônios, dependendo do tradutor. Existem diferentes versões para a origem do nome; a mais aceita pelos historiadores conta que quando os colonizadores portugueses se instalaram na região, os indígenas os atacavam escondidos na mata e depois diziam aos portugueses que era o Anhangá, espírito da floresta."
"E os portugueses descobriram que não existia espírito nenhum depois?", perguntou Denis.
"Não descobriram.", respondeu a docente. "Com mais migrações, os indígenas foram perdendo suas terras e se viram forçados a mudar. Porém, o mito do Anhangá permaneceu circulando nas conversas pela cidade. Fortalecido, principalmente, pelos indígenas que haviam sido escravizados naquela época."
"E você acredita que existem espíritos e visagens, professora?", perguntou Júnior.
"Eu nunca vi nenhuma visagem, Júnior."
"Nem pensou ter visto alguma vez?"
"Quando eu era jovem pensei ter visto alguma coisa. Mas era só o vento. Por quê a pergunta?"
A turma ficou em silêncio novamente. Nesse instante a porta da sala de aula se abre com força. As crianças pularam da cadeira. Imaginaram um fantasma entrando para assistir à aula. Era Carla, a mãe de Rian.
"Professora, o Rian está aqui?", perguntou pálida com olhos arregalados percorrendo os corredores de carteiras da sala de aula em busca de seu filho.
"Não está não. Pensei que ele estivesse doente. Por isso, não tendo vindo para escola. Está tudo bem?"
"Rian não voltou para casa ontem. Pensei que estivesse dormido na casa de algum amigo e vindo direto para aula."
"Crianças, alguém viu o Rian?" dirigiu-se a professora para a turma. Todos permaneceram calados.
"Mãe, procure a diretoria da escola, eles podem ter o contato de outros pais", orientou a professora e, em seguida, retomou a sua disciplina, livre de interrupções.
Na diretoria da escola, Carla explicou a situação. O diretor, ela e a equipe de coordenação ligaram para vários pais de alunos perguntando pelo Rian, mas ninguém sabia informar o paradeiro da criança. Apenas ficaram sabendo que as crianças foram a um igarapé após as aulas. Aos prantos, não lhe restava outra alternativa senão ir à polícia pedir ajuda nas buscas.
"Socorro, meu filho sumiu!", Carla entrou na delegacia gritando e buscando conter seus soluços de choro.
"Calma, senhora. Vamos lhe ajudar." lhe garantiu um policial que estava chegando para assumir seu turno. "Eu sou o Cabo Silveira. Pode contar comigo. Sente-se e me conte tudo."
Após ouvir o relato, Silveira a levou de volta à casa para descansar. Solicitou uma viatura para patrulhar a vizinhança em busca de Rian, enquanto ele coordenaria uma equipe de busca para explorar o igarapé onde as crianças estavam.
Na manhã seguinte, foram organizadas três equipes de busca diferentes. Cada uma com três policiais. Uma para cada um dos três maiores igarapés próximos da cidade. Cabo Silveira fora designado para um igarapé balneário. Pela manhã não havia banhistas no local, apenas os proprietários do bar que moravam no local em uma casa de madeira ao lado de onde vendiam comidas e bebidas para os banhistas. Silveira interrogou-os.
"Vocês viram esta criança por aqui ontem?", indagou exibindo uma foto.
"Não havia crianças aqui ontem", dissera um senhor barrigudo.
"Eles estavam aqui ontem, sim." afirmou com rigidez o outro policial. "Uma turma inteira da escola."
"Eu já disse que não. Tu é surdo é?", vociferou o proprietário em resposta.
"Abaixa o tom! Abaixa o tom que isso é desacato!"
"Abaixa o tom você! Só porque tá de uniforme pensa que pode gritar."
Silveira se afastou enquanto eles gritavam um com outro e passou a examinar melhor o igarapé. Aquele ponto fora represado pelo proprietário do bar para permitir que as águas se alongassem e formassem uma piscina natural para mergulho e banho enquanto ele vendia bebidas e petiscos à margem do lago. Havia muitas latas de cerveja, talheres de plástico e restos de comida entre o bar e as águas, porém nenhum sinal de algum material escolar perdido ou de lancheira infantil que ele esperava encontrar, lembrando que, com frequência, os jovens perdem tais pertences. Conduzindo o olhar para o igarapé, percebeu que o igarapé vinha de uma região por onde era fácil caminhar. Teve uma ânsia de vômito ao olhar naquela direção. Então voltou-se para seus colegas.
"Vamos nos dividir.", sugeriu Silveira. "Termine de pegar o depoimento dele e volte para a delegacia. E você, dê uma olhada lá em baixo e veja até onde o igarapé vai. Procure por sinais de pegadas ou de objetos que alguma criança possa ter perdido. Eu irei até lá em cima, onde o igarapé nasce. Nos encontraremos na delegacia."
Silveira subiu o igarapé e encontrou o que esperava. Primeiro achou um par de meias pequenas que alguma criança esquecera de calçar. Depois encontrou alguns apetrechos de prender cabelo usados pelas meninas. Se perguntava o que acontecera ali. Se deparou então com uma planta estranha. Verde-escura com listras brancas nas folhas. O som da água corrente evaporou, aquelas folhavas brilhavam na densa floresta escura. Ficou curioso para saber que cheiro teria aquela planta e arriscou arrancar uma das folhas.
De volta à delegacia, antes do almoço, os dois soldados que acompanhavam Silveira encontraram Carla lá esperando por notícias. As demais equipes de busca também voltaram sem ter encontrado nada. Anoitecia e o Cabo Silveira não voltara. Carla já estava em prantos novamente quando Valentina entrou com sua mãe na delegacia.
"Conta para eles filha, conta o que você viu."
Valentina se aproximou de Carla e lhe explicou com fraqueza na voz e dificuldade em articular: "Foi visageira, tia. Foi visageira."
Por três vezes a sombra da cruz da igreja matriz da cidade cobriu a praça central ao crepúsculo. Os habitantes de Anhangatuba passaram a frequentar a igreja diariamente, orando pela volta de Rian e Silveira. O pároco da cidade, André, em compaixão por seu rebanho, convocou uma festa na porta da igreja para lembrar as pessoas de celebrar a vida e ter esperança de que os desaparecidos seriam encontrados. Haveria um grupo de carimbó, doces e pipoca para as crianças e a igreja sempre aberta para quem buscasse o alento da oração.
Enquanto a lua subia alto no céu, na noite festiva, André observava as pessoas chegando para dançar, comer e conversar. Quando o alvo satélite atingira sua altura máxima, André sorria sem exibir os dentes. Até aquele momento ele conversava com cada pessoa que chegava para acolhê-los alegremente. Entretanto, com a praça já bem cheia, permitiu-se relaxar. Já estava procurando um lugar para sentar-se quando notou alguém com um andar estranho, cambaleante no meio da praça. Uma pessoa pálida e de roupas escuras difíceis de distinguir à distância.
"Deve ser um bêbado", pensou o padre. "Tenho que tirá-lo daqui. Em festa de igreja não tem bebida.
André caminhou até o homem esdrúxulo e notou que este usava um uniforme policial. "Essas missões de busca estão acabando com eles, realmente. Quantas cachaças esse senhor bebeu?", conjeturava André no seu trajeto até o moço.
"Com licença, senhor", disse André puxando o rapaz pelo ombro direito. "Esta é uma festa de igreja, você não po..."
Ao encarar o rosto do homem, André empalideceu quase na mesma medida do outro. Cabo Silveira o encarou com olhar catatônico, boca aberta e tez tão branca quanto uma folha de papel. Seus olhos não piscavam. As mãos caídas ao lado do corpo, não parecia que seus ombros possuíam mais força alguma para levantar os próprios braços. André teu um passo para trás; coração acelerando, pupilas dilatando para enxergar melhor a criatura diante de si. Contudo, seu preparo instintivo não foi suficiente para deter os movimentos de Silveira quando ele esticou os braços para o padre e agarrou seus dois braços com tal força que André imaginou que teria seus ombros quebrados. Deixou escapar um gemido de dor, atraindo os olhares de outras pessoas ao redor.
Quem estava mais próximo reconheceu o Cabo Silveira, mas estranharam a maneira como apertava os braços do padre. Então Silveira abriu a boca e expeliu uma nuvem de fumaça branca com algum pó brilhante no rosto do padre. André sentiu o rosto arder. Ingeriu e respirou aquela fumaça, sentindo um calor ainda mais insuportável adentrar seu corpo. Gritou tão alto em sua agonia que mesmo a banda parou de tocar. Quando as pessoas perceberam que o padre estava sendo atacado, gritaram e correram amedrontadas, esvaziando a praça para deixar apenas os dois ali.
O flautista da banda que tocava na praça correu até o posto policial mais próximo para convocar ajuda. Quando voltaram para a praça, não restava mais ninguém ali. Nem Cabo Silveira, nem o padre André.
As pessoas deixaram de ir à igreja, temendo encontrar a visagem do padre por lá. As buscas por Rian e Silveira continuaram por mais alguns dias, porém até mesmo os policiais temiam ter o mesmo destino de Silveira e, a cada dia que se passava, menor era o contingente de busca. O pai de Rian, Artur, não se conteve em esperar.
"Não adianta Carla", reclamou Artur para sua esposa. "Eles não sabem nossa dor. Não querem encontrar o menino. São um bando de covardes, medrosos!"
"Calma, amor", ela respondeu ainda mergulhada em lágrimas. "O que podemos fazer?"
"Irei eu mesmo atrás do meu filho! Já chega!"
Artur saiu da casa furioso, conclamando os vizinhos e amigos para ajudar na busca por Rian. Iriam à tarde daquele mesmo dia, ansiosos por justiça e respostas do que estava acontecendo. Seis homens e duas mulheres partiram para a floresta antes do entardecer. Artur estava decidido a explorar o igarapé onde as crianças brincavam. Ao se aproximar do local, todos ouviram vozes estridentes vindo da floresta. Enquanto caminhavam na direção do som, a floresta escurecia e não conseguiam escutar mais nada. Daquela expedição, ninguém voltou para casa.
A sirene de alerta soou avisando que chegara a hora da distribuição de alimentos. A maioria da cidade estava em quarentena por escolha própria de seus cidadãos. Ninguém queria o destino de Silveira; do padre; de Rian e seu pai; e todas as pessoas desaparecidas. Não importava mais saber o que estava acontecendo. Ficar em casa esperando pelos mantimentos enviados pela prefeitura era preferível ao risco.
Após dez dias nesta rotina, Carla olhava pela janela de casa esperando o carro de comida passar. Contudo, naquele dia ela viu seu marido caminhando no meio da rua. Pálido como porcelana, andar tonto e errante. Pensou em gritar para chamá-lo, mas lembrou-se no incidente na praça e fechou as cortinas com medo. Em outros bairros, outras pessoas também viram seus conhecidos caminhando assombrosamente pelas ruas. Valentina viu Rian no mesmo estado e, chorando, correu para abraçar sua mãe.
Naquele dia, nem o carro da prefeitura ousou trafegar na cidade. O silêncio da quarentena só era quebrado pelo murmúrio estridente das visagens ambulantes. Palavras indistinguíveis de um idioma impossível. Caminharam pela cidade até o amanhecer. Na primeira hora da manhã, um grito veio da floresta. Ninguém conseguiu distinguir se era um grito masculino, feminino, ou mesmo se era uma única voz gritando. Os espectrais transeuntes pararam e olharam na direção da floresta em silêncio por alguns minutos. Em seguida, caminharam floresta adentro e nunca mais foram vistos.
Décadas após o incidente, Carla ficou conhecida na cidade como a Viúva. E foi assim chamada até seus últimos dias. Em seus anos finais, as pessoas já nem sabiam a origem do apelido. Nem os mais velhos da cidade ousavam contar a história. Sempre que perguntados choravam ou fechavam os olhos. Os jovens logo aprenderam a não questionar o assunto. Quando a Viúva faleceu, a cidade agiu como se um capítulo de um livro fosse fechado. Homenagearam-na com uma placa na prefeitura da cidade.
No momento em que a placa fora pregada e aplaudida, um casal de namorados banhava-se num igarapé. Sorriram ao encontrar um belo arbusto de timbó com manchas brancas e brilhantes em suas folhas.